quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

O Vaticano e o Lisboa-Dakar




O jornal oficial do Vaticano, o “L’Osservatore Romano,” em notícia desta quarta-feira dia 10, classificou o Rali Lisboa-Dakar como uma “corrida sangrenta e irresponsável”, na sequência da notícia da morte do motociclista sul-africano Elmer Symons numa etapa da prova.
No desenvolvimento da notícia, o jornal acrescenta que “ muitos classificam o rali como um evento desportivo mas que tem pouco a ver com uma competição saudável” e sublinha que “o rasto de sangue que cresce de ano a ano demonstra o inegável componente de violência que existe em todas as tentativas de exportar modelos ocidentais para ambientes humanos e ecossistemas diferentes do Ocidente”.
Pode ler-se ainda que “a organização e os patrocinadores da prova têm uma postura cínica que ignora as realidades locais e que os carros, motos e camiões abandonados no deserto são monumentos enferrujados de irresponsabilidade”.
Até parece que o autor do jornal do Vaticano leu o texto de Octávio Ribeiro, sobre o mesmo tema, publicado em editorial no Correio da Manhã. Entre outros argumentos, Octávio Ribeiro referiu-se também, por outras palavras, à questão da “exportação de modelos ocidentais” para países pobres confrontando a alegada riqueza representada pelos carros, motos, aviões, tecnologia do Rali com a pobreza dos países que a prova atravessa.
Aceito e respeito as opiniões de quem não concorda com este tipo de eventos tal como, discordando, aceito e respeito a opinião de Octávio Ribeiro, que, segundo diz, desde há muito que está contra o Rali Dakar. É o seu direito.
Como em tudo na vida, para se ter opinião pública convém estar na posse do máximo de dados a menos que se pretenda simplesmente dizer subjectivamente o que se pensa, o que, no meu entender, não se enquadra num editorial o qual, por norma, representa o pensamento geral da publicação.
Deixo de parte o doméstico Correio da Manhã que tem sido ao longo dos anos da sua existência um dos maiores entusiastas divulgadores do automobilismo para me debruçar sobre a posição do Osservatore Romano.
E, começaria por dizer ao jornalista do Vaticano que a prova Lisboa-Dakar é patrocinada por uma entidade que se chama Santa Casa da Misericórdia, que detém, entre muitos outros jogos de sorte e azar, a galinha dos ovos de ouro que se chama Euromilhões.

Recuemos no tempo.

A Santa Casa da Misericórdia foi lançada em 15 de Agosto de 1498 (estavam os portugueses a chegar à Índia “para divulgarem a fé em Cristo”) pela Rainha D. Leonor, com o apoio do Rei D. Manuel I. D. Leonor, viúva de D. João II, instituiu a Irmandade da Invocação de Nossa Senhora da Misericórdia, na Sé de Lisboa. Estabeleceu o Compromisso (de praticar o Bem e ajudar os necessitados, os pobres, presos e doentes) aprovado por D. Manuel I e confirmado pelo Papa Alexandre VI.


Promovia a sua intervenção, a nível religioso, com orações, missas e procissões e, os Irmãos anunciavam o Evangelho. O símbolo adoptado foi a imagem da Virgem, com o manto aberto e uma das 14 obras sociais consistia em rezar pelos vivos e pelos mortos.

Os custos da meritória obra social desenvolvida ao longo dos anos, apesar dos privilégios concedidos pela Coroa, tornaram-se incomportáveis, ao ponto de os responsáveis pedirem autorização para a instituição de uma Lotaria, para, “com os lucros”, acederem às necessidades.


Não sei se o Euromilhões da Santa Casa da Misericórdia, para além de patrocinador (leia-se financiador) principal do rali Lisboa-Dakar, estabeleceu ou não um programa de apoio aos necessitados dos países atravessados pela prova.
Sei sim que a organização da prova, desde há anos que, através de vários protocolos com os países africanos do Rali, desenvolveu 106 projectos que tocaram 271.000 pessoas, financiou uma verba de 600.000 €, sensibilizou 53.000 pesoas para as questões ambientais, formou 2.600 pessoas em gestão de recursos naturais, fixou dunas, montou esgotos para 3.300 famílias, construiu 209 reservatórios de água, construiu dispensários-maternidades no Senegal, um colégio na Mauritânia, uma escola e um depósito de água no Mali, deixou centenas de milhares de euros em medicamentos, vacinas, bombas de água e ferramentas. As próprias equipas participantes e pilotos individuais têm deixado ajuda nesses países. A Repsol, representada pelas equipas KTM (motos) e Mitsubishi, ofereceu 150 mil euros em material médico e medicamentos para prevenção da Sida. Concorrentes particulares levam material escolar, brinquedos e outras ajudas nos países onde passam.
Para “exportação de modelos ocidentais de quem ignora as realidades locais e componente de violência” não me parece mal.
Isto para não perder mais tempo com os pagamentos às polícias locais, às forças armadas, com a ocupação hoteleira, com as taxas, com as gorjetas e sei lá que mais que os habitantes locais tão bem sabem aproveitar com a passagem da caravana.

A morte de uma pessoa que seja é sempre de lamentar. Mas, quando a morte é aproveitada para fazer demagogia, parece-me menos bem. Todos os participantes desta prova são voluntários, sabem que, em 29 anos de Dakar, já morreram cerca de 50 pessoas. É muito, convenhamos. Mas, não ignoram, à partida, os riscos que correm bem como as autoridades dos países participantes.
Quantos editoriais não terá que escrever o jornal do Vaticano sobre as mortes de alpinistas nos Himalaias, de jogadores de futebol nos campos, de praticantes de box?
E sobre os que morreram sob as espadas dos Cruzados que levavam a cruz de Cristo nos peitos, para “exportarem a fé cristã”?
hs
fontes: edição do l’Osservatore Romano, sítio da Santa Casa da Misericórdia e sítio do Rali Dakar.

4 comentários:

jotamano disse...

Muito oportuno e rico em detalhes este teu "desabafo".Senti mais a pena do jornalista do que a do aficcionado que também és.
Acho que os caras do Vaticano desconhecem os benefícios do evento.Como aliás muita gente... eu por exemplo, desconhecia até hoje.Gostei de ficar sabendo. Tás a ver : tem males que vêm para o bem!
João Mano

Anónimo disse...

Que surpresa tão agradável, saber que um amigo, ex-colega que muito admirei não só no trabalho mas também quando era miudo ve-lo a correr no seu opel manta em terras angolanas, saudavelmente depois de reformado escrever num blog. Gostei de te ler e não desistas. Um abraço

Helder de Sousa disse...

Caro "Pablo"
obrigado pelo teu comentário pelo qual deduzo que nos conhecemos desde há muito. Poderás dar-me mais indicações sobre ti através de um mail para o meu endereço helderdesousa@gmail.com?
Um abraço
hs

asperezas disse...

DÁ DEUS NOZES...

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