terça-feira, 30 de junho de 2009

Miguel Sousa Tavares

Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A-6, em direcção a Espanha e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manhã, refaço o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa. Tanto para lá como para cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve incursão pela estrada nacional, entre Arraiolos e Borba, vamos encontrar um trânsito cerrado, composto esmagadoramente por camiões de mercadorias espanhóis. Vinda de um país onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela está espantada com o que vê:
- É sempre assim, esta auto-estrada?
- Assim, como?
- Deserta, magnífica, sem trânsito?
- É, é sempre assim.
- Todos os dias?
- Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.
- Mas, se não há trânsito, porque a fizeram?
- Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto.
- E têm mais auto-estradas destas?
- Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto, vamos ficar com três. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, não há nenhuma: só uns quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao Rio. Nós vamos ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. - respondi, rindo-me.
- E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada nacional está cheia de camiões?
- Porque assim não pagam portagem.
- E porque são quase todos espanhóis?
- Vêm trazer-nos comida.
- Mas vocês não têm agricultura?
- Não: a Europa paga-nos para não ter. E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável.
- Mas para os espanhóis é?
- Pelos vistos... Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:
- Mas porque não investem antes no comboio?
- Investimos, mas não resultou.
- Não resultou, como?
- Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou.
- Mas porquê?
- Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos.
- E gastaram nisso uma fortuna?
- Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos... - Estás a brincar comigo!
- Não, estou a falar a sério!
- E o que fizeram a esses incompetentes?
- Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa... e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.
- Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo?
- Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km. Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.
- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto?
- Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.
- Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa?
- Isso mesmo.
- E como entra em Lisboa?
- Por uma nova ponte que vão fazer.
- Uma ponte ferroviária?
- E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa. - Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!
- Pois é.
- E, então?
- Então, nada. São os especialistas que decidiram assim. Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la.
- E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta... - Não, não vai ter.
- Não vai? Então, vai ser uma ruína!
- Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína - aliás, já admitida pelo Governo - porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar.
- E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?
- Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!
- E vocês não despedem o Governo?
- Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo...
Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro?
- Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.
- O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?
- A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV.
- Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter?
- É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade. Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:
- E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?
- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa. - Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo?
- É isso mesmo. Dizem que este está saturado.
- Não me pareceu nada...
- Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP.
- Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível?
Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido.
- E tu acreditas nisso?
- Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo?
- Um lago enorme! Extraordinário!
- Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.
- Ena! Deve produzir energia para meio país!
- Praticamente zero.
- A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!
- A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.
- Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar - ou nem isso?
- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais.
- Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada? - Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor. Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:
- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?
- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, eram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez. Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou:

- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!

Miguel Sousa Tavares, jornalista, escritor de sucesso mas, para mim que o conheço desde os gloriosos anos de A LUTA, de Raúl Rego, é o porta-voz do povo. Ele sabe colocar no papel aquilo que as pessoas comuns têm nos seus pensamentos e não têm como exprimir.
Com a devida vénia, aí está mais uma das suas crónicas publicada no semanário português Expresso.u

terça-feira, 16 de junho de 2009

O PLANETA MULTICOLOR


O PAÍS

Sexta-feira, 12 de Junho 2009



Vasto Mundo
O planeta multicolor
João Melo



Patrick Kibangou nasceu na Repúbli­ca Democrática do Congo. É, portanto, congolês. Como a maioria da popu­lação do seu país de origem, é preto. A mulher, uma médica nigeriana, é igualmente preta. Mas Kibangou também é polaco. E não é um polaco “qualquer”: nas recentes eleições eu­ropeias, foi candidato a eurodeputado pelo ex-Partido Comunista da Polónia (não sei se elegeu ou não).
A história de Patrick Kibangou é de uma simplicidade singela, mas, ao mesmo tempo, paradigmática e exemplar. Filho de uma mulher extremamente católica, emigrou para a Polónia há 25 anos, porque a sua mãe lhe disse que esse era o país do Papa João Paulo II. Adquiriu a cidadania polaca nos anos 90.
O exemplo de Kibangou é mais uma demonstração de que as fronteiras epidérmicas, tal como as físicas, comunicacionais, culturais ou financeiras, tendem a desapare­cer. O mundo está cada vez menos para purismos e fundamentalismos de qualquer tipo, por mais exaltados (e até assassinos) que alguns deles, por vezes, ainda sejam.
A verdade é que, em áreas cres­centes do mundo, está a ocorrer uma reconfiguração identitária, que poderá tornar definitivamente o planeta não apenas multicultural, mas multicolor. A excepção, por enquanto, parece ser a Ásia.
Assim, nas Américas, a emergência dos antigos deserdados – os indígenas e os negros – contribui, por fim, para a materialização da promessa de cons­trução de um Novo Mundo, datada da expansão marítima europeia, mas jamais cumprida plenamente. Não é só o exemplo de Obama. Em países como a Bolívia e outros, os indígenas come­çam a ganhar outro protagonismo. No Brasil, a luta contra a discriminação da maioria de origem africana, embora complexa e difícil, avança.
Na Europa, a emigração, sobretudo africana, árabe e latino-americana, começa a rejuvenescer as suas socie­dades, o que, aos poucos, está a ter uma tradução política e institucional visível (basta ver os ministros negros em alguns países europeus). Nesse sentido, as restrições migratórias recentes terão, a médio e longo prazo, um efeito perverso para a Europa, que corre o risco de envelhecer definitiva­mente, em todos os aspectos.
Essa tendência conta ainda com poderosos e actuantes adversários. Ocasionalmente, os mesmos surgem de onde menos se espera.É que teve de enfrentar o moçambicano branco Paulo Serôdio, que em 1984 foi para os EUA, onde se naturalizou. Apesar de ser de uma família que está em África há três gerações, foi impedido de se autodefinir, numa sala de aulas, como “afro-americano branco”.
Aliás, o nosso continente é uma das regiões onde a possibilidade de convivência epidérmica é objecto de tendências altamente contraditórias, descambando, às vezes, na violência (recorde-se o Uganda de Idi Amin ou o Zimbabwe, do Mugabe “pós.-revolucionário” e senil).
Assim, criticamos, com justiça, a persistência dos preconceitos raciais e mesmo da xenofobia nas sociedades europeias, mas somos incapazes de construir um novo modelo, antes replicamos esses preconceitos e essas práticas, apenas invertendo o sinal.
Mesmo num país como o nosso, cuja população tem uma origem diversificada, há gente demais que, nessa matéria, continua prisioneira do raciocínio dos anos 50. Entre nós, talvez Patrick Kibangou fosse consi­derado “angolano de ocasião
”.
Nota: João Melo é um dos mais respeitados comentadores angolanos. As suas opiniões, se não comandam a agenda política do país, de certeza provocam reacções fortes na sociedade civil.
Com a devida vénia, publico este comentário (inserido no semanário O PAÍS), uma marca de lucidez e de espírito aberto que tanta falta faz em Angola.

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