segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Referendo


O meu amigo Nuno Guerreiro Josué estava hoje particularmente satisfeito. O Sim ganhou no referendo, até a percentagem com que ganhou foi superior à abstenção.

Tentei explicar-lhe que nada tinha sido alterado, mas para ele as vitórias morais são realmente importantes. “A seguir, vai haver um referendo sobre os casamentos gay”, dizia. Ele não é gay, mas segue atentamente causas destas, favoráveis à igualdade formal.

“Por que não um referendo sobre algo que de facto interesse”, perguntei-lhe. “Por exemplo, o sistema fiscal?” Em Portugal, como em Angola, o sistema fiscal é ainda mais anedótico que o judicial – se não há processo que esteja simultaneamente em segredo de justiça nos cofres dos tribunais e nas mãos dos jornalistas, não há desporto mais popular que a fuga ao fisco, que já de si se preocupa quase exclusivamente de esmifrar os trabalhadores por conta de outrem.

Mas é assim... O interesse continua virado para os debates abstractos, com posições de direita e esquerda, sempre entre quem nada tem a ver com o assunto.

Sim, porque quem discutiu o aborto não foram as mulheres forçadas a abortar clandestinamente em quartos de parteiras. Não que as mulheres que apareceram na televisão não tenham uma vez ou outra abortado – mas em Espanha, em clínicas, assistidas por médicos, não no vão de escada.

Vai ser interessante acompanhar o que se vai seguir.

Quem ia a Espanha, já pode fazer o mesmo em Portugal – em clínicas, pagando em conformidade.

Quem ia à abortadeira, poderá ir ao hospital. Mas a menos que os abortos sejam feitos nos serviços de urgência, o mais certo é as mulheres serem forçadas a enfrentar listas de espera tão longas como as que existem para os restantes procedimentos cirúrgicos. Quer dizer, a interrupção voluntária da gravidez poderá ser feita quando a criança tiver uns três ou quatro anos...

3 comentários:

Helder de Sousa disse...

Referendo II


Neste país em crise de identidade, onde uns quantos se levam muito a sério como se detivessem a sabedoria absoluta de tudo, alegro-me em saber que alguns desses entendem que a vitória do SIM no referendo confirma o posicionamento do país na grelha dos mais evoluídos da Europa. Sonhar ainda não paga imposto e, quando se ganha a vidinha no bem-bom dos areópagos da União Europeia, fica bem afirmar-se a evolução deste povo só porque, finalmente, caiu na realidade – a de constatar que a civilizada definição de aborto Interrupção Voluntária da Gravidez atravessa toda a sociedade e não somente determinados grupos. Viu-se, pelos resultados que até houve católicos que votaram sim mas, sobretudo, viu-se como alguns gurus activamente defensores do NÃO se enganaram redondamente em relação ao povo do qual, quer queiram quer não, fazem parte por muito que se coloquem nos iluminados pódios das televisões e das colunas de opinião dos jornais.
Quererem concatenar os votantes do sim na esquerda e os do não na direita pouco mais é do que uma visão afunilada e elitista de alguns dos pensadores de serviço diário. Como se um assunto tão forte, tão íntimo, tão pessoal como é o aborto pudesse ser adejado à sombra de uma qualquer bandeira de pensamento político, quando não partidário. Poupem-me.
Portugal ganhou galões de país evoluído por ter votado sim ao aborto, de acordo com a pergunta do referendo? No meu entender não ganhou. Se alguém ganhou, foram as mulheres e os homens envolvidos em situações de terem de evitar a vinda de um filho indesejado pelas mais variadas e pessoalíssimas razões.
Distinguir ricos de pobres, porque uns vão ao estrangeiro e outros vão à parteira da esquina é redutor e de pequenez mental. O problema não está no estilo. Está muito mais a montante e muito mais profundo porque nasce do mais íntimo da mulher... e do homem.
A vitória do sim não significa que, de um dia para o outro, nos tornámos mais evoluídos, mais modernos, mais p’rá frentex. A ser assim, tínhamos de liberalizar as drogas ditas leves, legalizar a prostituição, a eutanásia, se é isso que define a evolução de um povo.
As campanhas milionárias pelo sim e pelo não influenciaram o sentido de voto de quem foi às urnas? Desconfio que pouco. Há assuntos pessoais que a consciência, a razão, a experiência, a sensibilidade se definem no espírito de cada um independentemente de campanhas ou de sábias opiniões.
Gostava de ver a mesma mobilização, o mesmo entusiasmo, a mesma militância em assuntos tão prementes como o “terrorismo fiscal”, a corrupção (não só no futebol), o atraso cívico, a falta de educação, de instrução praticados diariamente neste país para irmos ao cerne daquilo que somos como povo e de como nos posicionarmos para recuperarmos os muitos anos de atraso que temos em relação aos restantes parceiros da frente europeia.
O atavismo de um povo não se muda de um dia para o outro num referendo cujo resultado, ainda por cima, não é vinculativo.
hs

kambuta disse...

Helder, a tua análise é muito lúcida e colocas o dedo nas feridas certas. Um abraço.

jotamano disse...

Frase que me chegou de Amigo em Berlin : " o absurdo é que muitos dos que votam SIM, usufruiram de um NÃO"

Parabens, Helder, pela riqueza dos teus comentários ( independentemente de eventuais divergências )
Abraço a 40 graus neste carnaval carioca
JLM

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