terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Juventude eterna



Juventude passada em África é juventude para sempre. O cheiro da terra fica impregnado na pele, a luz do pôr-do-sol cola-se na retina, transporta-se tudo no atrelado da memória leva-se para onde se vai e com isso se vai montando uma forma de estar no mundo. Reduzir essas lembranças ao cheiro da terra ou ao pôr-do-sol não é, contudo razão para nos apropriarmos de uma civilização milenar, há outros factores, as vivências, as amizades, os amigos de terreiro, as partilhas e compadrios inocentes, que nos aproximam mas não nos tornam donos de coisa nenhuma. O grande erro dos brancos em relação a África foi pensarem que europeizar os africanos à força era suficiente para lhes controlar os sentimentos encastoados em séculos de tradições. Os brancos nunca tiveram capacidade para entender os negros africanos, porque não quiseram na sua prosápia de civilizadores interesseiros, a Europa nunca quis e continua a não querer perceber a África e não são os imensissímos estudos feitos ao longo da ocupação branca dos territórios africanos que darão o toque de rebate para a tomada de consciência, no convencimento de que os seus valores “ocidentais” são superiores aos dos africanos. Esqueceram sempre que África é culturalmente mais antiga e mais homogénea que a Europa e que foi lá que apareceram os primeiros homens Australopitecos, há uns 3 a 4 milhões de anos, na zona do Transval, sul da África.
Ter vivido a infância e a juventude em África não significa, necessariamente, conhecer África e os africanos mas ajuda, quando se conviveu com africanos da mesma idade, se comeu o funge da mesma lata de leite Nido negra do fumo da fogueira, se bebeu da mesma água da chuva, se dormiu na mesma cubata, se tenha ouvido a transmissão oral da vida da família, se tenha queimado os pés na areia encarnada a ferver de sol. Ajuda, mas não basta. Não basta dizer-se que se tem coração negro enrolado em pele branca. A inversa também vale. Nenhum branco tem o direito de vestir a pele negra simplesmente porque nunca chegou a sentir a humilhação, a exploração desumana, a ignorância atrevida, o abuso interesseiro, numa sucessão de centenas de anos, não foram escravizados e enviados para o Brasil, para os Estados Unidos ou para a Jamaica, não tiveram necessidade de mostrar um cartão assinado todos os dias pelo patrão empregador, não conheceram o chicote do diligente cipaio seu patrício, não carregaram sacos de café, não escavaram a terra em busca de diamantes. Isso ficou colado na pele ao longo de gerações.
Quando se é muito jovem, não se tem percepção disso. Na vivência de uma criança branca na África colonizada não há traumas, não há sentimentos de culpa, há só liberdade de passarinho e a cor da pele não é percebida. Tudo se passa com naturalidade, os dias fluem em ritmo lento definido pela própria Natureza, a terra quente, o embondeiro carregado de múcua, a gajaja acompanhada de pó da estrada, o papagaio feito de papel de embrulho colado com funge, o banho na cacimba das chuvas da época, a fogueira à porta da cubata, o carrinho feito de bambu com rodas de caricas, o regresso à noite a casa dos pais, a escola, as linhas de caminho de ferro de Portugal, a fotografia de Salazar na parede da escola, nada saber das quedas do Duque de Bragança, da fenda da Tundavala, da Baía dos Tigres, da Rainha Ginga, de povos e reinos com história, importante mesmo era ir apanhar mabangas na maré baixa para o arroz domingueiro, a tomada de consciência do lugar de cada um poderá chegar, ou não um dia, um dia não marcado no calendário quando despertam as interrogações, os porquês, o peso das origens e a hora da escolha. Ficam recordações ficam, de cheiros, sons, vozes, falares, cores, do fim do asfalto, do espaço, do horizonte avermelhado ao fim da tarde, dourado ao princípio do dia, dos pequenos amigos de infância de calções sem cor, numa terra a crescer mais depressa que nós para um destino que ninguém poderá prever.

hs

11 comentários:

Anónimo disse...

"Nenhum branco tem o direito de vestir a pele negra simplesmente porque nunca chegou a sentir a humilhação, a exploração desumana, a ignorância atrevida, o abuso interesseiro, numa sucessão de centenas de anos, não foram escravizados e enviados para o Brasil, para os Estados Unidos ou para a Jamaica..."

É precisamente nisto que "bato" sempre, quando discuto sobre África! Costumo dizer que : << ...consigo desculpar tudo,todas as atitudes, mesmo extremistas, pois não há povo mais injustiçado e que tenha sido mais desumanizado que os africanos -- na sua própria terra!>>

Gostei do que li!

kambuta disse...

Helder, espectacular este teu «post». Até arrepia de verdadeiro, parecendo que as cores e os cheiros estão presentes. Parabéns.

Anónimo disse...

Simplesmente...lúcido!!!
Obrigada pelo que vai escrevendo.

Anónimo disse...

" (...)Nenhum branco tem o direito de vestir a pele negra simplesmente porque nunca chegou a sentir a humilhação, a exploração desumana, a ignorância atrevida, o abuso interesseiro, numa sucessão de centenas de anos, não foram escravizados e enviados para o Brasil, para os Estados Unidos ou para a Jamaica, não tiveram necessidade de mostrar um cartão assinado todos os dias pelo patrão empregador, não conheceram o chicote do diligente cipaio seu patrício..."

-- Está tudo aqui!

"Quando se é muito jovem, não se tem percepção disso. Na vivência de uma criança branca na África colonizada não há traumas, não há sentimentos de culpa, há só liberdade de passarinho e a cor da pele não é percebida."

-- Acredito que na maior parte dos casos seja assim mas, certamente houve mães como a minha que, sempre me alertou para situações como essas, e a quem vi chorar: até pelo kandengue que servia a sua Senhora e tinha como banco - para comer o seu funge de espinhas - únicamente as suas pernas!

Mas ficaram os cheiros, ficaram as cores, ficou-nos toda essa cultura rica como a Terra.
Um dia eu hei-de lá morar e, será para sempre!

asperezas disse...

Hélder, África não é homogénea.
Há tremendas diferenças entre os "3" Nortes, os 3 Centros e o Sul. Este último, algo homogéneo, dentro da sua vastidão, mas não muito para 1 africano.
Também não é certo que África seja o "berço da humanidade". É impossível na Europa e no "próximo e Médio Orientes" fazer semelhante "descoberta", simplesmente porque todos os vestígios foram varridos ou soterrados pelas "civilizações" e pelos seus "progressos"...
De resto, alguém é capaz de me dizer qual o povo ou raça que nunca foi colonizado, escravizado e torturado?
Os portugueses são quem afinal?
Não são o resultado de um enorme caldeirão de povos dominados e dominadores?
Porquê lamentar a nossa infância, e sobretudo o lugar onde crescemos, que é o que na nossa alma determina a NOSSA TERRA, e porventura a nossa pátria, ausente no espaço, neste caso?

marita faini adonnino disse...

Leer lo que has escrito,Helder,despertó en mí encontradas emociones-fuertes ambas.Una parte de tu texto me trajo aromas de playas lejanas donde tenía lugar la comprensión y la amistad entre razas diferentes; el otro, despertó en mí la indignación por el dolor sufrido (dolor que continúa)por esos mismos hombres a manos de otra raza que se cree superior y con derechos a serlo y veo reflejado en el dolor africano a nuestro maltratado continente cuando la civilización se abatió sobre América y Africa.
Entonces recuerdo a dos renombrados filósofos que encararon el tema desde ángulos diferentes.
Mientras Heidegger , en 1934, había dicho "los negros no tienen historia" excluyendo a Africa de la dialéctica de la historia y al africano como hacedor , también, de la historia universal; mientras, digo, Heidegger pronunciaba esta condenable frase, Sartre se vuelve a sus coterráneos, a los europeos como él,diciéndoles :"Ustedes, tan liberales, tan humanos, que llevan al preciosismo el amor por la cultura, parecen olvidar que tienen colonias y que allí se asesina en su nombre"".....el europeo no ha podido hacerse hombre
sino fabricando esclavos y monstruos....Nuestras víctimas nos conocen por sus heridas y por sus cadenas.Bastan que nos muestren lo que hemos hecho de ellas para que conozcamos lo que hemos hecho de nosotros mismos."
Dísculpame que te recuerde este texto de Sartre, pero al leer el tuyo refieriéndose al africano veo espejado el sufrimiento de nuestros indígenas que morían de a miles bajo el exterminador mal trato de los españoles que los hacían trabajar hasta la extenuación buscando oro y plata.Tanto que en las islas del Caribe muchos indígenas mataban a sus hijos y se suicidaban en masa para no sufrir la tortura aplicada por los blancos.
Quizás me salí del tema que tú hablas donde dejas traslucir el amor que aún sientes por el continente africano donde transcurrió tu infancia valorizando a sus hijos, pero también hablas del abuso del europeo en busca de diamantes y oro y de la trata de esclavos-esa horrible mancha que la humanidad aún no logra ni logrará limpiarse.
Ojalá llegue el día que aquellas naciones que aún tienen resabios de diferencias étnicas(-incomprensible)puedan un día cantar los versos de la poetiza chilena Gabriela Mistral ,dirigido a todos los niños del mundo "Dame la mano y danzaremos,dame la mano y me amarás, como una sola flor seremos,como una flor y nada más"
Marita Faini ADonnino-Argentina

Anónimo disse...

Este texto do Helder "bate fundo" no coração daqueles que passaram a infancia e a juventude em África. Eu não sou excepção, é o regresso às origens, dos tempos de "liberdade". Sempre me fez confusão porque é que o meu amigo de cor da pele diferente tinha que ser tratado de outra maneira. Os "mais velhos" diziam que era "preto" e mais nada. Naquele tempo não era premitido aos candengues fazerem muitas perguntas sob pena de levarem um "puxão de orelhas". Hoje felizmente até é importante que os candengues perguntem, para perceberem o mundo que os rodeia.
O cheiro e a cor de África nunca desaparece do nosso pensamento.

Cacusso disse...

É difícil encontrar já adjectivos para este post, já estão todos nos comentários.
Brilhante é o mínimo!
Parabéns.

Cacusso disse...

Parabéns. Post soberbo.

Koluki disse...

Cheguei aqui atraves de um caminho do rio que descobri na “Materia do Tempo”... Os meus parabens ao autor por esta visao tao bela, porque poetica e, acima de tudo, bastante lucida, da essencia de nos e do que nos rodeia. Uma abordagem bastante rara daquilo que quantas vezes se pretende afastar para terrenos "marginais", mas que afinal constitui o amago de muitas das questoes com que amiude nos confrontamos nas nossas, quantas vezes falhadas, frustradas, tentativas de dialogo inter-cultural e multi-racial. Well done!

PS: Gostei especialmente da lembranca do papagaio colado com funge... ate' lhe sinto o cheiro...

Anónimo disse...

"Na vivência de uma criança branca na África colonizada não há traumas, não há sentimentos de culpa, há só liberdade de passarinho e a cor da pele não é percebida. Tudo se passa com naturalidade, os dias fluem em ritmo lento definido pela própria Natureza, a terra quente, o embondeiro carregado de múcua, a gajaja acompanhada de pó da estrada, o papagaio feito de papel de embrulho colado com funge, o banho na cacimba das chuvas da época, a fogueira à porta da cubata, o carrinho feito de bambu com rodas de caricas, o regresso à noite a casa dos pais, a escola, as linhas de caminho de ferro de Portugal(...)"
Também partilho dessa sensibilidade, mas não saberia exprimi-la como o fez. Obrigado.

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