
Ter vivido a infância e a juventude em África não significa, necessariamente, conhecer África e os africanos mas ajuda, quando se conviveu com africanos da mesma idade, se comeu o funge da mesma lata de leite Nido negra do fumo da fogueira, se bebeu da mesma água da chuva, se dormiu na mesma cubata, se tenha ouvido a transmissão oral da vida da família, se tenha queimado os pés na areia encarnada a ferver de sol. Ajuda, mas não basta. Não basta dizer-se que se tem coração negro enrolado em pele branca. A inversa também vale. Nenhum branco tem o direito de vestir a pele negra simplesmente porque nunca chegou a sentir a humilhação, a exploração desumana, a ignorância atrevida, o abuso interesseiro, numa sucessão de centenas de anos, não foram escravizados e enviados para o Brasil, para os Estados Unidos ou para a Jamaica, não tiveram necessidade de mostrar um cartão assinado todos os dias pelo patrão empregador, não conheceram o chicote do diligente cipaio seu patrício, não carregaram sacos de café, não escavaram a terra em busca de diamantes. Isso ficou colado na pele ao longo de gerações.
Quando se é muito jovem, não se tem percepção disso. Na vivência de uma criança branca na África colonizada não há traumas, não há sentimentos de culpa, há só liberdade de passarinho e a cor da pele não é percebida. Tudo se passa com naturalidade, os dias fluem em ritmo lento definido pela própria Natureza, a terra quente, o embondeiro carregado de múcua, a gajaja acompanhada de pó da estrada, o papagaio feito de papel de embrulho colado com funge, o banho na cacimba das chuvas da época, a fogueira à porta da cubata, o carrinho feito de bambu com rodas de caricas, o regresso à noite a casa dos pais, a escola, as linhas de caminho de ferro de Portugal, a fotografia de Salazar na parede da escola, nada saber das quedas do Duque de Bragança, da fenda da Tundavala, da Baía dos Tigres, da Rainha Ginga, de povos e reinos com história, importante mesmo era ir apanhar mabangas na maré baixa para o arroz domingueiro, a tomada de consciência do lugar de cada um poderá chegar, ou não um dia, um dia não marcado no calendário quando despertam as interrogações, os porquês, o peso das origens e a hora da escolha. Ficam recordações ficam, de cheiros, sons, vozes, falares, cores, do fim do asfalto, do espaço, do horizonte avermelhado ao fim da tarde, dourado ao princípio do dia, dos pequenos amigos de infância de calções sem cor, numa terra a crescer mais depressa que nós para um destino que ninguém poderá prever.
hs