segunda-feira, 24 de março de 2008

Perguntas à Língua Portuguesa

Mia Couto


Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões?
Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas?
Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:
• Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
• No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
• A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
• O mato desconhecido é que é o anonimato?
• O pequeno viaduto é um abreviaduto?
• Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.
• Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?
• Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
• Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
• O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
• Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?
• Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
• Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
• Mulher desdentada pode usar fio dental?
• A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
• As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?
• Um tufão pequeno: um tufinho?
• O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
• Em águas doces alguém se pode salpicar?
• Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
• Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
• Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
• Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos.
Devolver a estrela ao planeta dormente.

3 comentários:

Pitigrili disse...

Soberbo!!!!!

Carlos Medina Ribeiro disse...

1- Joaquim Letria acaba de publicar, em

http://sorumbatico.blogspot.com/2008/05/o-fim-dos-erros.html

uma crónica intitulada «O fim dos erros»

-

Vou tomar a liberdade de, em comentário, transcrever este texto do Mia Couto.

Abraço

CMR

Anónimo disse...

Agora é que vou escrever com erros!
Português, falamos e inventamos todos nos países diferentes que a língua une. Eu, que sou de Portugal, não entendo para quê um acordo, para quê ter que desaprender tanta coisa que me faria ser castigado na escola se eu inventasse. Não compreendo, mas não por achar que o português que eu falo é melhor que o português que fala um brasileiro, um moçambicano, um timorense. Escrevemos diferente. Será isso que nos impede de adorar os livros de Jorge Amado, de Pepetela, de Mia Couto ou de Aquilino Ribeiro?
Tantas maneiras diferentes de falar, de escrever e afinal uma comunhão que nos permite a todos apreender o sentido, saborear as subtilezas, entender os ambientes, as terras e a sua gente.
Por isso, pergunto-me: porque não podemos ser livres de falar português cada um à sua maneira? Se todos nos compreendemos, porquê uniformizar, fazer lei de um padrão qualquer, decidido no gabinete, obrigando-nos a esquecer a escrita e a fala que encheu de sons as nossas vidas?
Eu gosto muito de ouvir o português de muitas terras diferentes. Como Mia Couto, acho que a língua é uma coisa sempre em mudança, que em cada terra se vai inventando ao sabor da vida e até talvez das paisagens, do clima. A fraternidade que nos dá a língua, está nesta maravilha simples e deliciosa: falamos, cada um à sua moda e afinal todos sabemos entender. Se os políticos, os legisladores, os empresários precisam de um acordo para assinar tratados e protocolos ou para vender os produtos mais facilmente, eu que até gosto de conversar, não preciso de acordo nenhum. Se há acordo, eu passarei à categoria dos velhos que aprenderam coisas erradas num tempo muito antigo. Talvez assim desculpem a um professor o facto de começar a escrever com muitos erros aos sessenta anos. Mas o segredo que aqui fica é que vou escrever com erros porque quero escrever o português à minha moda e desafiaria os amigos de cada terra a continuarem como eu, cada um a saborear a fala e a escrita de todos nós, cada um à sua maneira.
Fora os políticos e os empresários, alguém fica a perder? Será que é a falta do acordo que nos separa?

Vítor Almada
valmada@netcabo.pt

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