quinta-feira, 5 de abril de 2007

O DESVIO

Ainda não me dei ao trabalho de ver se há alguma Associação, Grupo ou qualquer coisa daquelas que se criam quando há mais que um com o mesmo problema, tipo Alcoólicos Anónimos, Automobilistas Não Sei Quê. No caso que me interessa seria qualquer coisa como Associação dos Portadores de by-passes, sem que a quantidade tivesse necessariamente que servir de base para hierarquizar o grupo, género, atenção, eu levei cinco by-passes, tenho de ser o Presidente, os que levaram quatro poderão fazer parte da direcção, os de três, dois e um by-passes serão devidamente colocados em lugares de destaque do grupo, tipo, porta-vozes, relações públicas para idas à televisão, por aí fora.
A questão tem a sua razão de ser na medida em que cada caso é um caso e um tipo que só levou dois by-passes pode ter reacções na convalescença pós-operatória muito diversas daquele que levou cinco. Então, giro giro era mesmo a malta dos by-passes encontrar-se uma vez de vez em quando, no intervalo das análises e dos exames de rotina para trocarem experiências. Pelo meu lado, começo por dizer a todos, incluindo os futuros companheiros de grupo (se vier a existir) que não me lembro rigorosamente de nada desde que me levaram para o chamado bloco operatório (quando pegaram na minha cama com rodas e me disseram vamos levá-lo para o bloco pensei, com alguma apreensão, que me iam inscrever no grupo do Louçã sem meu consentimento prévio, mas não era isso o que, aliás a acontecer, representaria uma grosseira forma de abuso e aproveitamento das minhas reduzidas capacidades), portanto, desde que me levaram para o tal bloco (onde alguém se aproveitou da minha inconsciência e andou a remexer em costelas, coração, veias e sei lá que mais) até que me devolveram ao acolhedor ambiente dos cuidados intensivos, não me lembro rigorosamente de nada. Acho que me drogaram e não sei se isso não será caso de queixa contra a senhora que me disse, estava eu ainda meio vivo, senhor Helder, fique descansado, não vai dar por nada. Pois, pois. É que não dei mesmo por nada, eles lá fizeram o que quiseram e não fossem os metros de tubos que tinha ligados a mim em todos os cantos do corpo acho até que estava a passar uns bons momentos. Mas, aí está, se o grupo me pedisse para contar a minha experiência eu teria que declinar por absoluta falta de memória. Falaria, então, de quê? Da enorme cicatriz deixada na minha perna direita cuja origem vim a saber ser a marcação do lugar onde estava a safada de uma veia safena cujo lugar, afinal não é aquele na perna é assim género apêndice que nasce com a gente mas que é logo retirado aos primeiros sinais de personalidade do dito, só que a veia, em alguns casos clínicos, tem de ser transplantada lá da perna para lugares mais nobres, mais interiores. Então, na reunião dos tais by-passianos anónimos, talvez eu comentasse o facto de achar um exagero levarem-me uma veia aí com uns bons 60 cm de comprimento só para engalanarem o meu coração e perguntaria aos circunstantes companheiros se também lhes fizeram o mesmo e pediria mesmo para levantarem a perna da calça a fim de que eu pudesse constatar ter recebido o mesmo tratamento de transplante que os outros...ou não. Reflectiria seriamente num outro aspecto, pedindo aos companheiros que me acompanhassem no raciocínio começando assim por uma cálculo mental se a veia tinha 60 cm e se me colocaram 3 by-passes, então, matematicamente, cada by-passe tem 20 cm. Chegado a esta conclusão exclusivamente matemática, assalta-me uma outra que duvido os meus companheiros de reunião seriam capazes de limpar . Se cada by-pass dos meus tem 20 cm (partindo do princípio que o meu médico é poupadinho e aproveitou todos os centímetros da safena), então o meu caso era mesmo sério, complicado, o entupimento das veias devia ser maior do que o das sarjetas de Lisboa, ao ponto de, se calhar, terem instalado no início de cada by-pass uma placa DESVIO para que o fluxo do sangue não se enganasse de via.
Se não foi assim e só aproveitaram, digamos, uns 30 cm, acho legítimo interrogar sobre o paradeiro dos meus restantes 30 cm. É que não acredito que os tenham deitado para o lixo e já tenham sido queimados numa dessas malvadas incineradoras.
Está quase passado um mês sobre a invasão ao interior do meu peito e, afinal, as queixas e constatações que me assaltam o espírito passam ao lado de aspectos por ventura importantes e afectuosos como o apoio da família é tudo no processo de recuperação, ou, quando me viro para o lado direito dói-me a clavícula do mesmo lado, ou, nunca fiz tanto chichi na vida como agora, deve ser dos comprimidos que ando a tomar, e vocês, também fazem muito chichi, perguntaria aos colegas. Seria para isto que sairia do meu casulo para ir às reuniões? Acho que a minha conturbada alma em convalescença não aceitaria tal contrato até porque, o que eu poderia dizer, afinal, poderia abalar as amáveis consciências dos possíveis companheiros porque já me pus a guiar contra a indicação de só 45 dias depois, já tomo um copo de vinho às refeições, já carrego alguns pesos tipo computador portátil, malinha de fim-de-semana, enfim, já faço coisas que, pelas normas, só poderia começar a fazer 45 dias depois da operação. Espero bem que o meu médico salvador, o dr. Pedro Magalhães não frequente este blog senão, vai desancar-me na próxima consulta de verificação.
É que não há tempo nem é tempo de se estar doente e, uma tal associação, a existir, ou em vias de formação não me terá de certeza nem como vogal.
hs

5 comentários:

Pitigrili disse...

Ó Rato, um copito (só um...), vá lá; guiar, só se escolheres muito bem para não apanhares estradas com buracos; mas carregares pesos? Sabes como é chato e difícil refazer soldaduras (no ferro, não nos ossos) quando se partem.
Tambulaconta!
E parabéns pelo regresso ao mundo dos vivos!!!
Éferriá!!!

Anónimo disse...

Helder:
Alguém me disse um dia o seguinte:
Quem tem maleitas é que sabe o que sente, o clínico apenas ajuda a curar. Se o meu amigo se sente capaz, goze a vida, com moderação ( até parece o slogan de conduzir)e sentido de humor.
Hoje, finalmente a Primavera deu um "sinal da sua graça", será que é para ficar!!!
Kandandus
A.A.

Helder de Sousa disse...

Obrigado Piti,
obrigado A.A.....
vejo que dei um ar de gabarolas no meu post...claro que só faço aquilo que o meu corpo deixa mas é bom ir fazendo progressivamente experiências para ver o nosso grau de evolução.....
Se calhar, este cheirinho de Primavera é uma boa ajuda para acelerar o regresso ao mundo dos vivos...
hs

Joao Coimbra disse...

Pois eh caro Dede!
Muito bem escrito este preambulo da nova Associacao dos By-Pass.
Mas recomendo que as reunioes se facam de calcoes, para que todos possam comparar as medidas das veias retiradas, os pontos, cicatrizes, e porque nao... as pernas uns dos outros!
Os pesos e alteres deixa-os para as tuas netas que elas ajudam-te.
Feliz Pascoa

kambuta disse...

Á grande Helder, já a «speedar»!. Tem calma meu amigo porque o tempo é teu companheiro e não quer ninguém doente. Achei fantástica a tua ideia da associação dos «by-pass» e contribuo já com 2 irmãos, uma sogra e um cunhado. Um abraço grande.

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