segunda-feira, 5 de abril de 2010

Páscoa


O Páscoa

A primeira vez que o vi foi perto da igreja da aldeia. O lugar era simpático, acolhedor. Uma frondosa árvore, dentro de um quintal de uma casa a cair de abandonada. Não lhe prestei muita atenção, pensei que era dali, pensei que até estava bem entregue, aos cuidados das bondosas mulheres que sempre povoam as igrejas das aldeias. Ou, quem sabe, aos carinhos que as crianças da catequese sempre deixam brotar quando distraídas das suas brincadeiras.
Foi uma passagem fugaz aquela que me proporcionou o breve encontro. Homem de cidade, mesmo na tranquilidade do trânsito da aldeia, que é nenhum, e, ainda sob a protecção da sombra da árvore e da igreja, não consegue libertar-se dos seus condicionamentos urbanos. Tem pressa de chegar, ainda que não tenha destino, e deixa de ver o que o rodeia.
A vista acabada de acontecer já tinha sido passada para as traseiras da memória rápida, corria o risco de nunca mais voltar ao cimo das lembranças. A vida é assim mesmo, dizemos nós na cidade. É feita de fugazes momentos. Ou será feita de fugas?
Entre pores de sol e noites de estrelas, passaram os dias, as memórias recentes não subiram à prateleira das lembranças, os contornos do ontem ficavam rapidamente cativos duma actualidade precária.
A igreja e a árvore, nas suas imensidões de tempo passado, eram aqueles marcos que o citadino precisa de usar para abrandar, nem ele sabe bem o quê. Stress, a doença da moda nas grandes cidades? O quintal estava vazio, a igreja fechada, faltava a razão do encontro e mil tormentosos pensamentos me atravessaram a mente. Perturbado pela ausência, achei por bem usar mais um daqueles subterfúgios de urbano e rumar, o mais rápido que o trânsito me deixasse (que era nulo), até à casa no cimo da rua onde, ao fim da tarde, tinha o costume de lavar os olhos naqueles verdes campos a perder de vista.
A recordação do encontro esvaiu-se com o regresso à cidade, perdeu-se nas nuvens do caos urbano. Era o regresso aos insistentes olhares nervosos para o relógio, a procura da segurança nos vidros fechados do carro, o mergulho nos labirintos do instinto de defesa.
Por altura da Páscoa, nova deslocação à aldeia e o cumprimento dos habituais rituais como ir ao café da Teresa tomar a bica de qualquer hora. E o reencontro com a tranquilidade. Há lugares que transpiram sossego e luz, é uma sorte encontrá-los. Lugares onde tudo é, natural onde até os automóveis parecem querer camuflar-se na paisagem. Parece haver uma ordem estabelecida e cumprida para não perturbar a Natureza.
Não sei bem como nem porquê, o meu olhar foi atraído para o portão do quintal. Ele ali estava, silencioso, como a fazer-me recordar a sua existência num súbito estremecimento de quase culpa. Era Páscoa, a alma estava mais aberta, mais receptiva a ajudar.
Agitei-me com a presença inesperada, fervilhavam-me pensamentos desencontrados sobre o que fazer. Ocorreu-me oferecer-lhe comida que ele, com alguma desconfiança de ser da rua, aceitou com parcimónia.
As visitas repetiram-se, vinha lá de baixo, postava-se em frente ao portão, aceitava a comida e voltava não sei para onde. Instalou-se em mim a ansiedade de o ver todos os dias. Estaria bem, precisaria de alguma coisa para além daquilo que lhe deixava à vista como anzol para apanhar a sua confiança?
Da prudência ao hábito diário ele pareceu entender que era ali que tinha encontrado um porto seguro onde se sentia protegido e até… acarinhado. Montou residência, inverteu o sentido das suas andanças. Nunca mais de lá saiu, o Páscoa.






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