quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O GRITO


Volto à doméstica política e volto mais uma vez a um escrito do Miguel Sousa Tavares. Se a situação política em Portugal fosse um jogo de futebol (parece que se chama agora, partida, deve ser futebolês com que ainda não me familiarizei), era fácil resolver a questão culpando o árbitro. Mas a desgraça é tal que o país de Camões, de Vasco da Gama, de Pedro Álvares Cabral e de tantas outras ínclitas figuras, já não tem sequer árbitro. Dizemos, nós, os sem iates e sem Ferraris, nós, os das casas e ordenados penhorados que "em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão". O drama é maior do que parece quando um povo já perdeu a força do direito à revolta num país onde "os que mandam" dão os piores exemplos de falta de respeito pelas pessoas. Miguel volta a por a mão na ferida, volta a gritar aquilo que já ninguém mais grita. Gostaria eu que não fosse uma voz a pregar no deserto.


Leiam esse grito do Miguel Sousa Tavares.




As más companhias


Miguel Sousa Tavares (http://www.expresso.pt/) Segunda-feira, 16 de Nov de 2009



Pode ser que me engane, mas o potencial de danos que Armando Vara pode vir a causar a José Sócrates é bem maior do que todos os outros casos ou pretensos casos que tanto desgastaram a imagem do primeiro-ministro e tão decisivamente contribuíram para a perda da maioria absoluta do PS. Armando Vara (e não a 'Face Oculta') tem a capacidade de, por si só, arrastar Sócrates para a queda num poço de que se desconhece a profundidade. Há amizades que matam, quando se misturam com outras coisas que não são misturáveis. Foi José Sócrates quem, em nome da amizade (porque competência ou qualificação para o cargo ninguém a conhecia, nem ele), fez de Armando Vara administrador do banco do Estado, três dias depois de este ter adquirido uma espécie de licenciatura naquela espécie de Universidade entretanto extinta - e porque uma licenciatura era recomendável para o cargo. E foi José Sócrates quem, indisfarçadamente, promoveu a transferência de Santos Ferreira e Vara da Caixa para o BCP, numa curiosíssima operação de partidarização do maior banco privado português, sobre as ruínas fumegantes do escândalo em que tinha acabado o case study da sua gestão 'civil'. Manda a verdade que se diga, porém, que estes dois golpes de audácia de José Sócrates em abono de um amigo e compagnon de route político foram devidamente medidos: aparentemente, Sócrates contava com o silêncio e aceitação cúmplice com que toda a classe empresarial e financeira recebeu a meteórica ascensão de Armando Vara aos céus da banca e o take-over do PS sobre o BCP, como se de coisa naturalíssima se tratasse. O escândalo não ultrapassou as fronteiras da opinião pública, de modo a perturbar o núcleo duro do regime. E isso foi um primeiro sinal do nível de promiscuidade aceite entre o político e o económico a que estamos agora a assistir. E, em silêncio sempre, toda a classe empresarial clientelar foi assistindo a uma série de notícias perturbadoras sobre operações bancárias a favor de algumas empresas ou investidores que, por acaso certamente, pertencem ao tal núcleo duro do regime, que goza do favor político da actual maioria. Sempre escrevi aqui que, em minha opinião, o problema do PS não é o que ele deixa de fazer em benefício dos pobres, mas o que faz e consente em benefício dos potentados. O fascínio com o grande capital e os grandes negócios (inspirados, promovidos ou pagos pelo Estado) é a perdição do PS. Aos poucos, este PS tem vindo a copiar o modelo de gestão introduzido por Alberto João Jardim na Madeira: negócios privados com oportunidades e dinheiros públicos, em troca da solidariedade política para com o Governo. Um capitalismo batoteiro, com chancela 'social' e disfarce de 'interesse público'.Neste clima de facilitismo instalado, já ninguém se espanta com as sucessivas e tremendas notícias sobre o estado de gestão do 'interesse público'. Já não espanta descobrir que nenhuma das contrapartidas da ruinosa e inútil aquisição dos submarinos tenha sido executada e que a sua execução nem sequer esteja devidamente salvaguardada no contrato assinado pelo Estado português. Não espanta que a Grão-Pará (uma empresa que não existiria sem os sucessivos favores do Estado, incluindo do ex-ministro e ex-socialista Pina Moura), possa, finalmente e com o beneplácito do Supremo Tribunal Administrativo, construir, e em grande, na zona de construção proibida do Parque Natural Sintra-Cascais. Não espanta que, antes mesmo de lançadas ou terminadas as obras, as últimas seis concessões de auto-estradas já tenham ultrapassado em 40% o valor das estimativas do Governo - num impressionante 'deslize' de 1110 milhões de euros. Não espanta que o Tribunal de Contas chumbe duas das adjudicações porque as condições em que elas foram outorgadas não são as mesmas do concurso público, mas substancialmente mais gravosas para o Estado. E não espanta que o presidente das Estradas de Portugal venha afirmar que se trata apenas de "interpretações jurídicas" diversas e que a suspensão das empreitadas irá pôr em causa postos de trabalho (um 'argumento' mágico que vale para justificar todas as tropelias cometidas nos últimos anos, em matéria de urbanismo e obras públicas). E não espantará ninguém que, como aqui escrevi a semana passada, em breve se descubra que, antes mesmo de iniciadas as obras, já o TGV e o aeroporto de Alcochete 'derraparam' 20 ou 30% sobre o seu custo anunciado. E, se se conseguir penetrar a meticulosa teia de 'pareceres' técnicos, estudos, cláusulas ocultas dos contratos, arbitragens sempre desfavoráveis ao Estado, se formos tentar descobrir como, porquê e a favor de quem é que não há uma obra pública que cumpra o orçamento, encontraremos sempre mais do mesmo - os mesmos processos, os mesmos truques, as mesmas empresas, os mesmos 'facilitadores' de negócios no papel de go between entre o 'interesse público' e os negócios privados. Isto, num país onde o défice das contas do Estado chegou aos 8% e a dívida pública aos 80% do PIB e o extermínio fiscal sobre os que pagam impostos se tornou insustentável. O ar está a ficar irrespirável.Como se tudo isto não fosse já alarmante, eis que a justiça implodiu de vez e à vista de todos, em sucessivas cenas lamentáveis na praça pública. A coisa ficou tão anárquica que já se tornou normal ver os jornalistas irem pedir opiniões sobre os casos mediáticos pendentes aos sindicatos dos juízes e do Ministério Público! Não fosse a PJ (única entidade da justiça que ainda merece algum crédito) e um seu investigador de Aveiro, e a 'Face Oculta' nunca teria conhecido a luz do dia ou teria logo patinado. Mas, como os maus hábitos nunca se perdem, eis que tudo já entrou na normalidade, com as escandalosamente normais fugas do segredo de justiça a invadirem a imprensa, tratando de sabotar alegremente uma investigação até aqui conduzida num exemplar silêncio e profissionalismo. E já só pode dar vontade de rir (ou de chorar!) assistir ao espectáculo único de ver os dois mais altos magistrados do país - o presidente do Supremo e o PGR - trocando galhardetes de antiga amizade fundada em rivalidades sindicais, empurrando um para o outro as malditas escutas entre Armando Vara e José Sócrates. Seja qual for o conteúdo de tão sensível material, e mesmo que jamais o venhamos a saber, eles conseguiram já o pior de todos os resultados: instalar uma suspeita mortal sobre o primeiro-ministro e o funcionamento da própria justiça, que não tem reparação possível. É, de facto, notável que o único cidadão deste país que não entende que há coisas que não podem esperar dois meses ou até oito dias para serem reveladas, seja o cidadão que ocupa o lugar de procurador-geral da República! Realmente, o lugar parece estar amaldiçoado e desde há muito.Junte-se então um governo cujo primeiro-ministro é dado a companhias comprometedoras, um sistema em que se fundem e confundem o político e o económico, o público e o privado, uma justiça que verdadeiramente se tornou cega e surda, mas não muda, um Presidente da República que se desautorizou a si próprio no pior momento, e um país onde as noções de interesse público e serviço público já quase se perderam por completo sem vergonha alguma, e tudo isto começa já a cheirar indisfarçadamente mal. Cheira a fim de regime e só os loucos ou os extremistas é que podem achar isso uma boa perspectiva para o futuro.




Texto publicado na edição do Expresso de 14 de Novembro de 2009


sábado, 21 de novembro de 2009

o discurso


Hoje é, por ter mesmo que ser, o dia de todas as palavras. Dia de que cada um que passar por esta tribuna se lembrará até ao silêncio sagrado da sepultura, a menos que, antes, venha desse mistério do Cosmos a brutalidade de um varredor de memórias como o Alzheimer e nos dê cabo de uma das mais belas relíquias conservadas nos labirínticos baús do cérebro. Quero muito sinceramente chegar ao rude calar da voz, ao apagar cruel da vida, com a estampa desta tarde feliz em condições de ser recordada sempre.

Meus amigos,
No dia de hoje, 21 de Novembro de 2009, eu e mais doze outros angolanos vencidos pelo vício bom da escrita, descobrimos a fórmula infalível de se ganhar peso no tempo curto de uma cerimónia pública. Na verdade, ao franquearmos as portas desta Casa e assumirmos a ousadia de reviver o mesmo ambiente que Agostinho Neto inaugurou sendo muitos de nós meninos farruscos do areal, alguns fazendo gatafunhos nas creches que Angola não possuía e outros até ainda sem estarem contemplados pelo dom da vida, só poderemos sair daqui da única maneira que é possível: com mais peso sobre os ombros: o peso da responsabilidade de cidadão, de patriotas, de homens e mulheres que optaram por servir Angola no campo que lhe confere a dimensão da glória e do respeito num Mundo de disputas pela notoriedade, a cultura.
Portanto, sabemos todos o que este compromisso que assumimos agora vai significar daqui para a frente. Não nos tornamos notáveis nem estrelas; somos – isso sim – cidadãos com os passos escrutinados, a preguiça questionada, a qualidade cobrada segundo padrões mais exigentes, porque os leitores – esperamos – vão aumentar exponencialmente.
Estamos a ter os nossos quinze minutos de fama e é como se diz na gíria quase maçónica dos negócios: “não existem almoços de borla”. Se a União de Escritores Angolanos teve a gentileza de nos acolher no seu regaço, quererá com certeza alguma coisa em troca. E ainda bem: faz-nos o único pedido que dela pode partir, que escrevamos muitos e bons livros, para que as letras angolanas se suplantem na qualidade, nos temas, na diversidade, nos nomes.
Aproveito para anunciar, desde já, que farei a minha parte. Num intervalo curto de dez dias, se as velhas armadilhas das gráficas forem tolerantes, terei todo o prazer de voltar a ver-vos a todos nesta sala, para receberem “Um Ano de Vida”, o livro que escrevi aos pedaços mas disciplinadas entregas de sete em sete dias.
E é por este mesmo parto anunciado que vou começar por lembrar-vos os caminhos da minha escrita, dizendo que Um Ano de Vida pertence-nos a todos, certamente mais que qualquer outro livro que tenha escrito antes.
Primeiro, porque são crónicas recentes, que ganharam expressão material desde o dia 14 de Novembro de 2008, quando nos lançámos na ousadia do jornal O PAÍS, obedecendo a outra minha paixão incorrigível: o jornalismo.
Digo que é um livro de todos porque os motivos, os temas, a inspiração, vieram de todo o lado. Nada nem ninguém, quase, ficou de fora. Estão os tempos de yakala yá, quando as pedras na madrugada tinham estatuto de fila humana e o recolher obrigatório deixava nos cidadãos a incerteza entre o deixar-se estar em casa e o pão que faltaria, com a berraria desatinada dos filhinhos que, por mais que se lhes explicasse, nunca entendiam o que era isso de comida racionalizada, a carne à míngua, o arroz aos quilinhos, o açúcar às colheradas. Estão as alegrias desse tempo esquisito, quando era um acto de heroísmo shakesperiano ou valentia troiana, conseguir ao meio-dia um prato de arroz com peixe frito, acompanhado de um batalhão de finos em copos reco-recos da Vidrul, bebidos depois com um desespero de tuaregue do Sahara no inesperado oásis que segura o minúsculo fio de vida. São crónicas do absurdo e do nobre, da inocência e do grotesco. Trazem tudo como num bom sarrabulho servido num quintal com alma angolana, onde cinco convidados depois se transformam em dez, quinze, dezanove, vinte e muitos, porque a música já levanta poeira e a vizinhança resolveu entrar também, os amigos dos amigos são convocados de emergência para darem cabo da cerveja que ameaça sobreviver à caçada.
É assim como espero que Um Ano de Vida seja recebido, por ser um livro que traz muito dos meus encontros e desencontros com Angola, as suas gentes simples, os meus camaradas de profissão, as minhas viagens de repórter mas, sobretudo, o meu nunca oculto amor pelas pessoas e os lugares que o apelo da grande cidade deixou. São crónicas com sabor ao mais palpitante dos lugares que piso sob este céu azul de África, o Tomessa.
Sim, porque foi ali que tudo começou, um dia.
Nasci de pais humildes e batalhadores. Meu pai, um multiofício que tanto fazia calças para os vizinhos, desenrascava uma janela para o forasteiro, ou aplicava uma injecção de quinino ao amigo que ardia em febres palúdicas. E fazia mais: ensinava os menos afortunados a descobrirem o segredo das palavras na popular cartilha João de Deus, cultivava o café, a ginguba, o feijão, o milho e a banana para a prole; mergulhava na emoção da bola no seu Sporting Clube do Banza Polo para os campeonatos das Regedorias mas galvanizava ao mesmo tempo meia Carmona no seu Clube Recreativo do Uíge, onde era estrela respeitada pelos seus golos, as suas assistências, os seus dribles de seguríssima antologia. No fim de tudo, sobrava-lhe o essencial: tempo para amar. A mulher que teve, os filhos que gerou, sete ao todo.
Do outro lado da balança, minha mãe. Mulher de armas, pequena apenas no físico, e um génio tremendo que a tornava vizinha do temível. Morreu sem poder ler os livros que o filho escreveu, porque nem a Cartilha João de Deus, nem a gloriosa Batalha da Alfabetização lançada por um filho inalcançável desta Casa –Agostinho Neto – conseguiu dar-lhe a luz das letras. Mas mesmo assim morreu infinitamente feliz, sabia que os filhos liam por ela, para ela e quase com ela.

Os meus primeiros gatafunhos num caderno foram na escola primária do Tomessa, um rectângulo de tijolo e argamassa de paredes pintadas em creme que ali ainda distribui generosamente o melhor que um povo pode ter, longe do brilho e da estridência do neón, dos Ferraris, das pesadas mascotes em ouro, dos cartões de crédito sem limite, dos poderes que esmagam os fracos: a educação.
Tratei sempre de ser um bom aluno. Aprendi cedo que nas condições limitantes de uma aldeola rodeada de verde, mato denso, barro vermelho e pouco mais, o sonho do mundo tinha de andar intensamente preso à luta pelo saber.
Os sinais de que as letras me conquistariam pertencem a um tempo curioso. Foi na transição do menino da aldeia para o colega pobre de meninos brancos, na Escola Preparatória Marechal Carmona. Lutava para nunca ter festa quando a nota na disciplina de Língua Portuguesa andasse distante do 18 ou 20. Uma aposta com expressão material nas composições que cada vez gostava mais, sobre animais, países, estados de espírito, até ao dia em que a escola inteira, com três mil alunos, foi convocada para um concurso de Redacção, cujo tema era: Se eu fosse o director…
Competia-nos, no fundo, avançar com ideias sobre a nossa escola, que já então – pleno período de esplendor económico de Carmona – tinha debilidades imensas, como infiltrações no tecto, vidros partidos e que levavam uma eternidade a repor, e casas de banho absolutamente “invisitáveis”, de tanta concentração de amoníaco e provavelmente outros gases radiactivos.
Surpreendentemente, ganhou o primeiro lugar o aluno número 13 da turma C do 1º ano do ciclo preparatório, de seu nome curto Luís Fernando.
A Redacção vencedora teve honras de publicação no jornal da escola, que não pude ler a não ser em espreitadelas aos boletins informativos dos colegas derrotados, pela simples razão de que 1 escudo e cinquenta centavos – o banal mil-e-quinhentos daquele tempo – era para mim uma fortuna ao alcance só em tempos de Natal.
Sem jornal e sem alegria, ficou contudo a ideia de que “quando eu for grande, talvez poderei sonhar em escrever livros”.
E passaram-se os anos até surgir o capítulo Cuba, em 1986. Foi aqui, nas cadeiras de Literatura, sobretudo o decisivo encontro com vultos das letras latino americanas como Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier, Pablo Neruda, que a suposição se fez certeza. Mas a saga dos Buendía naquele Macondo mítico de Cem Anos de Solidão, onde a escrita do colombiano Gabriel García Márquez celebra a níveis estonteantes o culto do improvável, acabou em mim qualquer vacilação que poderia alguma vez existir: tinha de ser escritor.
Devo, portanto, a “última palavra” ao homem que descreveu as peripécias dos ciganos naquele povoado perdido de uma Colômbia de economia a gravitar ao ritmo do cultivo da banana; o mago que acreditou no amor senil em tempos de cólera e mostrou a nudez cruel de Simón José António de La Santísima Trinidad Bolívar y Palacios, ou seja, Simón Bolívar, em o General no seu Labirinto. É ao Prémio Nobel de Literatura 1982 , Gabriel José García Márquez, nascido como eu numa aldeia sem direito a coordenadas geodésicas nos mapas, em Aracataca, que em última instância devo o empurrão decisivo para a aventura da escrita.
Lancei-me a ela ainda em Cuba, com um primeiro livro que poucos conhecem, fora do estrito âmbito da minha família. Chama-se Com Sabor a Terra, e fala – o que esperam? – do meu inigualável Tomessa. Se fosse vendido nas livrarias longe do lugar em que nasci, teria seguramente ganho carradas de pó e as aranhas fariam dele um salão de festas, com as suas teias caça-moscas. Nunca foi vendido e os seus 25 exemplares, saídos de uma gráfica artesanal na envelhecida Havana dos barbudos, acabaram oferecidos a alguns dos protagonistas da história simples do meu Tomessa.

Regressei a Angola em 1992, num ano em que todos sonhávamos com a democracia que o Mundo rico dos outros sempre disse ser um bom sistema de vida. Cheguei tarde para as eleições mas não para os bombardeamentos que por pouco interrompem mais cedo a minha missão na Terra. Dois obuses no quarto andar do prédio dos Combatentes onde tinha acabado de montar poiso, foi o suficiente para perceber que, para alguns, as eleições só são mesmo livres e justas quando se ganham. A derrota nas urnas sempre pode ser reclamada como fraude massiva e generalizada.
Mas, adiante. Hoje o dia é para a festa das letras, e nada mais!
No ano de 1999, perto da viragem do século, entendi que tinha já em baús dispersos aqui e ali umas Noventa Palavras que poderiam provavelmente ser do interesse do público. Decidi enfrentá-lo, com a Executive Center a aceitar o desafio e o amigo José Patrício, à época embaixador de Angola em Portugal, a honrar-me com as palavras do prefácio.
Os anos de jornalismo, com reportagens inquietas de um viajante, crónicas sobre lugares únicos como a Nova Iorque das Torres Gémeas, Hong Kong e Roppongi, em Tóquio, onde os boémios temos uma rua inteira só para nós, com bares loucos e discotecas mais loucas ainda, preenchem o livro de estreia.
Depois houve que selar a transição com que sonha qualquer jornalista que anda na profissão não para arrecadar alguns cobres suados: aventurar-se no seu primeiro romance. Fi-lo em 2002, numa sexta-feira 13, dia de azar. Para espantar os mitos e as superstições com um livro, todo ele, cheio de mitos e crenças mal explicadas de uma infância no campo. A Saúde do Morto, inspirada na saga de um uigense que construiu fama no Negage, Kibabo, com o seu mau hábito de morrer nas celas da PIDE, deixar-se apodrecer e seguir em frente com as suas tropelias, dias depois. Na narrativa, o feiticeiro-mor transmutou-se para João Kyomba.
Antes do Quarto veio a seguir. Com o título, as interpretações maldosas. Mas nada que não se explicasse. Se era o terceiro livro, não tinha porque não chamar-se Antes do Quarto.
Revisitei, com ele, a velha paixão do jornalismo. Crónicas que fui deixando no Jornal de Angola, ao qual estive ligado por mais de uma década, deram o volume 3 das minhas futuras Obras Completas.
O sucesso de João Kyomba com a sua saúde à prova de tudo, inspirou o prolongamento da saga. Mudou-se do campo para a cidade – e não uma cidade qualquer mas a sofisticadíssima Nova Iorque – e nasceu assim João Kyomba em Nova Iorque. Só tropelias, pois claro!
A generosidade da crítica e as palmadinhas nas costas afastaram da paisagem a veleidade da desistência. Que aliás nunca se colocou, mesmo quando os livros não melhoram a conta bancária de ninguém, entre nós.
Clandestinos no Paraíso foi o senhor que se seguiu. Luanda no seu melhor, onde um vencedor Alegria da Costa, vive numa semana o que nem Dom Quixote de La Mancha nem qualquer outro aventureiro conhecido do universo das letras, conseguiu alguma vez igualar. Champanhe e tresloucadas aventuras na horizontal fizeram dele o herói burlesco de um súbito enriquecimento que veio com a fábrica de banana seca em Cacuaco.
Depois dele, a desaceleração que também faz falta, para retomar o fôlego. Em 2008, na cidade onde me iniciei na escrita de notícias, o Uíge, entendi comemorar os meus trinta anos de estrada lançando A Cidade e as Duas Órfãs Malditas. Trezentos quilómetros distante do seu cenário, a Luanda da segunda metade do século dezanove, onde duas inocentes muito pouco inocentes, já dominavam a arte de embaraçar os senhores da alta sociedade transmitindo-lhes gonorreia em doses cavalares.
Um romance de época, que já despertou o interesse de um realizador estrangeiro que o quer levar ao cinema, mas que para mim é como todos os livros que escrevi até aqui : simples exercício de prazer, para que me divirta eu e se divirtam, comigo, todos os que sabem que precisam de conseguir tempo para ler.
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Este sou eu. E ponto final.


União de Escritores Angolanos, em Luanda, aos 21 de Novembro de 2009

Luís Fernando

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É para se ver como se escreve português em Angola.

Este texto é o discurso do escritor e jornalista angolano Luis Fernando, no dia em que foi admitido na prestigiada UNIÃO DOS ESCRITORES ANGOLANOS.

no comment

Na Na ilha de Luanda, a servir de separador da estrada da ilha.

domingo, 1 de novembro de 2009

AS IMAGENS DO LUIS

A INSUPORTÁVEL DAMA DO SAPATO VERMELHO

Ele faz o favor de me distinguir com uma admiração mais própria dos jovens em relação aos deuses da pop do que aquela de que me julgo minimamente credor: nenhuma.
Mas o Luís Fernando insiste em afirmar que me idolatra - o exagero é meu - desde os seus tempos de miúdo de escola e pé descalço no Uíge, antiga cidade de Carmona. Dizia-se ser a capital do café, a terra onde moravam mais produtores de café por metro quadrado. Curiosamente a riqueza nos bolsos desses “homens do café”, ou roceiros, em pouco ou nada se reflectia no desenvolvimento da cidade talvez porque grande parte do pecúlio ficava empenhado em cocktails falsificados nos cabarets da capital.
O Luís conta sempre a quem chega de fresco à redacção que o Helder era o ídolo dele naqueles tempos em que, como outros miúdos, corria morros e vales para ir ver as corridas de automóveis na cidade. Mal ele sabia, passados mais de 30 anos, que iria poder materializar a imagem dourada do homem do capacete ao volante de velozes e barulhentos bólidos a rasgarem as ruas de … Carmona. E, eu, mal sabia que iria cruzar-me com um antigo e incógnito admirador que, mais tarde, teria o sortilégio de reverter o sentido da admiração.
Mais do que antigo “kandengue” de pé descalço (como ele orgulhosamente se qualifica) num Uíge que ele venera e deseja fazer crescer, Luís Fernando é jornalista e escritor. Para mim, ele é um pintor sublime de palavras com que preenche telas de páginas da vida.
Se, em miúdo, eu era o ídolo dele por uma actividade efémera, agora, em idade adulta, ele é a minha referência perene em elegância na escrita. Escritor “compulsivo”, Luís Fernando faz do mais pequeno episódio do quotidiano uma estória e delicia-nos com a sua prosa alegre, corrida, expressiva.
Cada crónica dele, no jornal O PAÍS ou na revista VIDA é um manancial de figuras, de imagens que têm o condão de nos colocar directamente na acção.
Quem é que não está mesmo a ver o que é “uma respeitável dama entrada em anos, castigada pela impertinência da celulite “?
“A insuportável dama do sapato vermelho” é o título da crónica de Luís Fernando publicada na última página da Vida de 30 de Outubro deste ano. Pelo ritmo da escrita, dá a impressão que Luís Fernando a escreveu de um só fôlego, sem parar para pensar, na qual, nem o corrector automático do Word teve tempo de actuar.
É a história de uma senhora que entra, sem ter sido convidada, numa recepção dada por uma embaixada europeia, em Luanda. Se uma embaixada não é o sítio ideal para a intriga e o suspense, então não sei se haverá outro melhor para tal efeito cinematográfico. “Pareceu estranha a todos aquela voluptuosa irrupção num recinto que só concentrava casais”. Ambiente descrito, apresto-me a encostar-me ao balcão para testemunhar a sequência da prosa, quero dizer, do filme e já salivo os bombons de letras que se me apresentam a seguir.
“Cruzou na diagonal o rectângulo sem gente”, isto é, a dama atravessou um espaço vazio entre a entrada e uma zona onde se encontravam convivas. Imagino os olhares de uns … e de outras … até porque, o derradeiro troço da marcha que parecia decalcada a papel químico de uma noite de Óscares em Los Angeles” (estão a ver ???), “deu a todos a possibilidade de reparar na cor dos sapatos da misteriosa mulher: um vermelho sangue de absoluta vivacidade.”
A história desenrola-se em rápidas pinceladas de mestre. O homem a quem ela, a dama, tinha segredado qualquer coisa, “escapuliu-se em rápidos segundos, só, como se de repente um ataque de amnésia lhe tivesse arruinado o cérebro a informação de que tinha a acompanhá-lo, no cocktail de uma embaixada europeia, a mulher de toda a vida, a mãe dedicada dos seus seis filhos”.
Por respeito para com o autor e intenção pedagógica para com os leitores que deverão fazer tudo para lerem a crónica do Luis, não resisto a levantar, mesmo assim, um pouquinho mais da ponta do véu porque foi a mulher “de aspecto desmazelado por culpa implacável do tempo, da celulite e da vida rica, a lançar à desconhecida a óbvia pergunta: - quem é você?”.
Me desculpem os meus esforçados leitores, terei de omitir aqui a continuação do intrigante episódio que, de alma encantada e espírito em estado zen, não sei se aconteceu na realidade ou se, simplesmente, nasceu da inesgotável fonte criativa do Luís.
Retenho tão-somente a subliminar moral da peça onde surge mais uma voz a denunciar uma determinada forma de viver de novo-riquismo enfarpelado em belos fatos azuis às riscas “de um vencedor de nova vaga”.

hs

(consultar: www.vida.opais.net)







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