sábado, 21 de novembro de 2009

o discurso


Hoje é, por ter mesmo que ser, o dia de todas as palavras. Dia de que cada um que passar por esta tribuna se lembrará até ao silêncio sagrado da sepultura, a menos que, antes, venha desse mistério do Cosmos a brutalidade de um varredor de memórias como o Alzheimer e nos dê cabo de uma das mais belas relíquias conservadas nos labirínticos baús do cérebro. Quero muito sinceramente chegar ao rude calar da voz, ao apagar cruel da vida, com a estampa desta tarde feliz em condições de ser recordada sempre.

Meus amigos,
No dia de hoje, 21 de Novembro de 2009, eu e mais doze outros angolanos vencidos pelo vício bom da escrita, descobrimos a fórmula infalível de se ganhar peso no tempo curto de uma cerimónia pública. Na verdade, ao franquearmos as portas desta Casa e assumirmos a ousadia de reviver o mesmo ambiente que Agostinho Neto inaugurou sendo muitos de nós meninos farruscos do areal, alguns fazendo gatafunhos nas creches que Angola não possuía e outros até ainda sem estarem contemplados pelo dom da vida, só poderemos sair daqui da única maneira que é possível: com mais peso sobre os ombros: o peso da responsabilidade de cidadão, de patriotas, de homens e mulheres que optaram por servir Angola no campo que lhe confere a dimensão da glória e do respeito num Mundo de disputas pela notoriedade, a cultura.
Portanto, sabemos todos o que este compromisso que assumimos agora vai significar daqui para a frente. Não nos tornamos notáveis nem estrelas; somos – isso sim – cidadãos com os passos escrutinados, a preguiça questionada, a qualidade cobrada segundo padrões mais exigentes, porque os leitores – esperamos – vão aumentar exponencialmente.
Estamos a ter os nossos quinze minutos de fama e é como se diz na gíria quase maçónica dos negócios: “não existem almoços de borla”. Se a União de Escritores Angolanos teve a gentileza de nos acolher no seu regaço, quererá com certeza alguma coisa em troca. E ainda bem: faz-nos o único pedido que dela pode partir, que escrevamos muitos e bons livros, para que as letras angolanas se suplantem na qualidade, nos temas, na diversidade, nos nomes.
Aproveito para anunciar, desde já, que farei a minha parte. Num intervalo curto de dez dias, se as velhas armadilhas das gráficas forem tolerantes, terei todo o prazer de voltar a ver-vos a todos nesta sala, para receberem “Um Ano de Vida”, o livro que escrevi aos pedaços mas disciplinadas entregas de sete em sete dias.
E é por este mesmo parto anunciado que vou começar por lembrar-vos os caminhos da minha escrita, dizendo que Um Ano de Vida pertence-nos a todos, certamente mais que qualquer outro livro que tenha escrito antes.
Primeiro, porque são crónicas recentes, que ganharam expressão material desde o dia 14 de Novembro de 2008, quando nos lançámos na ousadia do jornal O PAÍS, obedecendo a outra minha paixão incorrigível: o jornalismo.
Digo que é um livro de todos porque os motivos, os temas, a inspiração, vieram de todo o lado. Nada nem ninguém, quase, ficou de fora. Estão os tempos de yakala yá, quando as pedras na madrugada tinham estatuto de fila humana e o recolher obrigatório deixava nos cidadãos a incerteza entre o deixar-se estar em casa e o pão que faltaria, com a berraria desatinada dos filhinhos que, por mais que se lhes explicasse, nunca entendiam o que era isso de comida racionalizada, a carne à míngua, o arroz aos quilinhos, o açúcar às colheradas. Estão as alegrias desse tempo esquisito, quando era um acto de heroísmo shakesperiano ou valentia troiana, conseguir ao meio-dia um prato de arroz com peixe frito, acompanhado de um batalhão de finos em copos reco-recos da Vidrul, bebidos depois com um desespero de tuaregue do Sahara no inesperado oásis que segura o minúsculo fio de vida. São crónicas do absurdo e do nobre, da inocência e do grotesco. Trazem tudo como num bom sarrabulho servido num quintal com alma angolana, onde cinco convidados depois se transformam em dez, quinze, dezanove, vinte e muitos, porque a música já levanta poeira e a vizinhança resolveu entrar também, os amigos dos amigos são convocados de emergência para darem cabo da cerveja que ameaça sobreviver à caçada.
É assim como espero que Um Ano de Vida seja recebido, por ser um livro que traz muito dos meus encontros e desencontros com Angola, as suas gentes simples, os meus camaradas de profissão, as minhas viagens de repórter mas, sobretudo, o meu nunca oculto amor pelas pessoas e os lugares que o apelo da grande cidade deixou. São crónicas com sabor ao mais palpitante dos lugares que piso sob este céu azul de África, o Tomessa.
Sim, porque foi ali que tudo começou, um dia.
Nasci de pais humildes e batalhadores. Meu pai, um multiofício que tanto fazia calças para os vizinhos, desenrascava uma janela para o forasteiro, ou aplicava uma injecção de quinino ao amigo que ardia em febres palúdicas. E fazia mais: ensinava os menos afortunados a descobrirem o segredo das palavras na popular cartilha João de Deus, cultivava o café, a ginguba, o feijão, o milho e a banana para a prole; mergulhava na emoção da bola no seu Sporting Clube do Banza Polo para os campeonatos das Regedorias mas galvanizava ao mesmo tempo meia Carmona no seu Clube Recreativo do Uíge, onde era estrela respeitada pelos seus golos, as suas assistências, os seus dribles de seguríssima antologia. No fim de tudo, sobrava-lhe o essencial: tempo para amar. A mulher que teve, os filhos que gerou, sete ao todo.
Do outro lado da balança, minha mãe. Mulher de armas, pequena apenas no físico, e um génio tremendo que a tornava vizinha do temível. Morreu sem poder ler os livros que o filho escreveu, porque nem a Cartilha João de Deus, nem a gloriosa Batalha da Alfabetização lançada por um filho inalcançável desta Casa –Agostinho Neto – conseguiu dar-lhe a luz das letras. Mas mesmo assim morreu infinitamente feliz, sabia que os filhos liam por ela, para ela e quase com ela.

Os meus primeiros gatafunhos num caderno foram na escola primária do Tomessa, um rectângulo de tijolo e argamassa de paredes pintadas em creme que ali ainda distribui generosamente o melhor que um povo pode ter, longe do brilho e da estridência do neón, dos Ferraris, das pesadas mascotes em ouro, dos cartões de crédito sem limite, dos poderes que esmagam os fracos: a educação.
Tratei sempre de ser um bom aluno. Aprendi cedo que nas condições limitantes de uma aldeola rodeada de verde, mato denso, barro vermelho e pouco mais, o sonho do mundo tinha de andar intensamente preso à luta pelo saber.
Os sinais de que as letras me conquistariam pertencem a um tempo curioso. Foi na transição do menino da aldeia para o colega pobre de meninos brancos, na Escola Preparatória Marechal Carmona. Lutava para nunca ter festa quando a nota na disciplina de Língua Portuguesa andasse distante do 18 ou 20. Uma aposta com expressão material nas composições que cada vez gostava mais, sobre animais, países, estados de espírito, até ao dia em que a escola inteira, com três mil alunos, foi convocada para um concurso de Redacção, cujo tema era: Se eu fosse o director…
Competia-nos, no fundo, avançar com ideias sobre a nossa escola, que já então – pleno período de esplendor económico de Carmona – tinha debilidades imensas, como infiltrações no tecto, vidros partidos e que levavam uma eternidade a repor, e casas de banho absolutamente “invisitáveis”, de tanta concentração de amoníaco e provavelmente outros gases radiactivos.
Surpreendentemente, ganhou o primeiro lugar o aluno número 13 da turma C do 1º ano do ciclo preparatório, de seu nome curto Luís Fernando.
A Redacção vencedora teve honras de publicação no jornal da escola, que não pude ler a não ser em espreitadelas aos boletins informativos dos colegas derrotados, pela simples razão de que 1 escudo e cinquenta centavos – o banal mil-e-quinhentos daquele tempo – era para mim uma fortuna ao alcance só em tempos de Natal.
Sem jornal e sem alegria, ficou contudo a ideia de que “quando eu for grande, talvez poderei sonhar em escrever livros”.
E passaram-se os anos até surgir o capítulo Cuba, em 1986. Foi aqui, nas cadeiras de Literatura, sobretudo o decisivo encontro com vultos das letras latino americanas como Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier, Pablo Neruda, que a suposição se fez certeza. Mas a saga dos Buendía naquele Macondo mítico de Cem Anos de Solidão, onde a escrita do colombiano Gabriel García Márquez celebra a níveis estonteantes o culto do improvável, acabou em mim qualquer vacilação que poderia alguma vez existir: tinha de ser escritor.
Devo, portanto, a “última palavra” ao homem que descreveu as peripécias dos ciganos naquele povoado perdido de uma Colômbia de economia a gravitar ao ritmo do cultivo da banana; o mago que acreditou no amor senil em tempos de cólera e mostrou a nudez cruel de Simón José António de La Santísima Trinidad Bolívar y Palacios, ou seja, Simón Bolívar, em o General no seu Labirinto. É ao Prémio Nobel de Literatura 1982 , Gabriel José García Márquez, nascido como eu numa aldeia sem direito a coordenadas geodésicas nos mapas, em Aracataca, que em última instância devo o empurrão decisivo para a aventura da escrita.
Lancei-me a ela ainda em Cuba, com um primeiro livro que poucos conhecem, fora do estrito âmbito da minha família. Chama-se Com Sabor a Terra, e fala – o que esperam? – do meu inigualável Tomessa. Se fosse vendido nas livrarias longe do lugar em que nasci, teria seguramente ganho carradas de pó e as aranhas fariam dele um salão de festas, com as suas teias caça-moscas. Nunca foi vendido e os seus 25 exemplares, saídos de uma gráfica artesanal na envelhecida Havana dos barbudos, acabaram oferecidos a alguns dos protagonistas da história simples do meu Tomessa.

Regressei a Angola em 1992, num ano em que todos sonhávamos com a democracia que o Mundo rico dos outros sempre disse ser um bom sistema de vida. Cheguei tarde para as eleições mas não para os bombardeamentos que por pouco interrompem mais cedo a minha missão na Terra. Dois obuses no quarto andar do prédio dos Combatentes onde tinha acabado de montar poiso, foi o suficiente para perceber que, para alguns, as eleições só são mesmo livres e justas quando se ganham. A derrota nas urnas sempre pode ser reclamada como fraude massiva e generalizada.
Mas, adiante. Hoje o dia é para a festa das letras, e nada mais!
No ano de 1999, perto da viragem do século, entendi que tinha já em baús dispersos aqui e ali umas Noventa Palavras que poderiam provavelmente ser do interesse do público. Decidi enfrentá-lo, com a Executive Center a aceitar o desafio e o amigo José Patrício, à época embaixador de Angola em Portugal, a honrar-me com as palavras do prefácio.
Os anos de jornalismo, com reportagens inquietas de um viajante, crónicas sobre lugares únicos como a Nova Iorque das Torres Gémeas, Hong Kong e Roppongi, em Tóquio, onde os boémios temos uma rua inteira só para nós, com bares loucos e discotecas mais loucas ainda, preenchem o livro de estreia.
Depois houve que selar a transição com que sonha qualquer jornalista que anda na profissão não para arrecadar alguns cobres suados: aventurar-se no seu primeiro romance. Fi-lo em 2002, numa sexta-feira 13, dia de azar. Para espantar os mitos e as superstições com um livro, todo ele, cheio de mitos e crenças mal explicadas de uma infância no campo. A Saúde do Morto, inspirada na saga de um uigense que construiu fama no Negage, Kibabo, com o seu mau hábito de morrer nas celas da PIDE, deixar-se apodrecer e seguir em frente com as suas tropelias, dias depois. Na narrativa, o feiticeiro-mor transmutou-se para João Kyomba.
Antes do Quarto veio a seguir. Com o título, as interpretações maldosas. Mas nada que não se explicasse. Se era o terceiro livro, não tinha porque não chamar-se Antes do Quarto.
Revisitei, com ele, a velha paixão do jornalismo. Crónicas que fui deixando no Jornal de Angola, ao qual estive ligado por mais de uma década, deram o volume 3 das minhas futuras Obras Completas.
O sucesso de João Kyomba com a sua saúde à prova de tudo, inspirou o prolongamento da saga. Mudou-se do campo para a cidade – e não uma cidade qualquer mas a sofisticadíssima Nova Iorque – e nasceu assim João Kyomba em Nova Iorque. Só tropelias, pois claro!
A generosidade da crítica e as palmadinhas nas costas afastaram da paisagem a veleidade da desistência. Que aliás nunca se colocou, mesmo quando os livros não melhoram a conta bancária de ninguém, entre nós.
Clandestinos no Paraíso foi o senhor que se seguiu. Luanda no seu melhor, onde um vencedor Alegria da Costa, vive numa semana o que nem Dom Quixote de La Mancha nem qualquer outro aventureiro conhecido do universo das letras, conseguiu alguma vez igualar. Champanhe e tresloucadas aventuras na horizontal fizeram dele o herói burlesco de um súbito enriquecimento que veio com a fábrica de banana seca em Cacuaco.
Depois dele, a desaceleração que também faz falta, para retomar o fôlego. Em 2008, na cidade onde me iniciei na escrita de notícias, o Uíge, entendi comemorar os meus trinta anos de estrada lançando A Cidade e as Duas Órfãs Malditas. Trezentos quilómetros distante do seu cenário, a Luanda da segunda metade do século dezanove, onde duas inocentes muito pouco inocentes, já dominavam a arte de embaraçar os senhores da alta sociedade transmitindo-lhes gonorreia em doses cavalares.
Um romance de época, que já despertou o interesse de um realizador estrangeiro que o quer levar ao cinema, mas que para mim é como todos os livros que escrevi até aqui : simples exercício de prazer, para que me divirta eu e se divirtam, comigo, todos os que sabem que precisam de conseguir tempo para ler.
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Este sou eu. E ponto final.


União de Escritores Angolanos, em Luanda, aos 21 de Novembro de 2009

Luís Fernando

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É para se ver como se escreve português em Angola.

Este texto é o discurso do escritor e jornalista angolano Luis Fernando, no dia em que foi admitido na prestigiada UNIÃO DOS ESCRITORES ANGOLANOS.

1 comentário:

asperezas disse...

Mais uma vez gostei muito de ler este senhor!

Hélder, sempre se escreveu bem em Angola: antes e a seguir. Nestas duas fases, alguns foram calados "como" já se esqueceu.
Angola vive uma outra fase. Que valorize os seus valores que brotam da sua própria terra.

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