Ele faz o favor de me distinguir com uma admiração mais própria dos jovens em relação aos deuses da pop do que aquela de que me julgo minimamente credor: nenhuma.
Mas o Luís Fernando insiste em afirmar que me idolatra - o exagero é meu - desde os seus tempos de miúdo de escola e pé descalço no Uíge, antiga cidade de Carmona. Dizia-se ser a capital do café, a terra onde moravam mais produtores de café por metro quadrado. Curiosamente a riqueza nos bolsos desses “homens do café”, ou roceiros, em pouco ou nada se reflectia no desenvolvimento da cidade talvez porque grande parte do pecúlio ficava empenhado em cocktails falsificados nos cabarets da capital.
O Luís conta sempre a quem chega de fresco à redacção que o Helder era o ídolo dele naqueles tempos em que, como outros miúdos, corria morros e vales para ir ver as corridas de automóveis na cidade. Mal ele sabia, passados mais de 30 anos, que iria poder materializar a imagem dourada do homem do capacete ao volante de velozes e barulhentos bólidos a rasgarem as ruas de … Carmona. E, eu, mal sabia que iria cruzar-me com um antigo e incógnito admirador que, mais tarde, teria o sortilégio de reverter o sentido da admiração.
Mais do que antigo “kandengue” de pé descalço (como ele orgulhosamente se qualifica) num Uíge que ele venera e deseja fazer crescer, Luís Fernando é jornalista e escritor. Para mim, ele é um pintor sublime de palavras com que preenche telas de páginas da vida.
Se, em miúdo, eu era o ídolo dele por uma actividade efémera, agora, em idade adulta, ele é a minha referência perene em elegância na escrita. Escritor “compulsivo”, Luís Fernando faz do mais pequeno episódio do quotidiano uma estória e delicia-nos com a sua prosa alegre, corrida, expressiva.
Cada crónica dele, no jornal O PAÍS ou na revista VIDA é um manancial de figuras, de imagens que têm o condão de nos colocar directamente na acção.
Quem é que não está mesmo a ver o que é “uma respeitável dama entrada em anos, castigada pela impertinência da celulite “?
“A insuportável dama do sapato vermelho” é o título da crónica de Luís Fernando publicada na última página da Vida de 30 de Outubro deste ano. Pelo ritmo da escrita, dá a impressão que Luís Fernando a escreveu de um só fôlego, sem parar para pensar, na qual, nem o corrector automático do Word teve tempo de actuar.
É a história de uma senhora que entra, sem ter sido convidada, numa recepção dada por uma embaixada europeia, em Luanda. Se uma embaixada não é o sítio ideal para a intriga e o suspense, então não sei se haverá outro melhor para tal efeito cinematográfico. “Pareceu estranha a todos aquela voluptuosa irrupção num recinto que só concentrava casais”. Ambiente descrito, apresto-me a encostar-me ao balcão para testemunhar a sequência da prosa, quero dizer, do filme e já salivo os bombons de letras que se me apresentam a seguir.
“Cruzou na diagonal o rectângulo sem gente”, isto é, a dama atravessou um espaço vazio entre a entrada e uma zona onde se encontravam convivas. Imagino os olhares de uns … e de outras … até porque, “o derradeiro troço da marcha que parecia decalcada a papel químico de uma noite de Óscares em Los Angeles” (estão a ver ???), “deu a todos a possibilidade de reparar na cor dos sapatos da misteriosa mulher: um vermelho sangue de absoluta vivacidade.”
A história desenrola-se em rápidas pinceladas de mestre. O homem a quem ela, a dama, tinha segredado qualquer coisa, “escapuliu-se em rápidos segundos, só, como se de repente um ataque de amnésia lhe tivesse arruinado o cérebro a informação de que tinha a acompanhá-lo, no cocktail de uma embaixada europeia, a mulher de toda a vida, a mãe dedicada dos seus seis filhos”.
Por respeito para com o autor e intenção pedagógica para com os leitores que deverão fazer tudo para lerem a crónica do Luis, não resisto a levantar, mesmo assim, um pouquinho mais da ponta do véu porque foi a mulher “de aspecto desmazelado por culpa implacável do tempo, da celulite e da vida rica, a lançar à desconhecida a óbvia pergunta: - quem é você?”.
Me desculpem os meus esforçados leitores, terei de omitir aqui a continuação do intrigante episódio que, de alma encantada e espírito em estado zen, não sei se aconteceu na realidade ou se, simplesmente, nasceu da inesgotável fonte criativa do Luís.
Retenho tão-somente a subliminar moral da peça onde surge mais uma voz a denunciar uma determinada forma de viver de novo-riquismo enfarpelado em belos fatos azuis às riscas “de um vencedor de nova vaga”.
hs
(consultar: www.vida.opais.net)
3 comentários:
Se o Luis Fernando foi "um sublime pintor" ao escrever a sua crónica, tu foste "um sublime escultor" ao moldá-la desta forma brilhante, impulsionando qualquer leitor do teu blog a partir de imediato para a leitura da "insuportável dama do sapato vermelo". Magnífica. Um abraço aos dois. Ana
Enhorabuena a los dos, es un trabajo muy bueno, como tantas otras, sois maestros de las letras y a vuestro lado se aprende mucho, pero cuanta verdad hay en este relato, trajes de rayas, dicen que se llaman de diplomatico, quizás, mejor de esos nuevos ricos que no saben nada más que contar a los demás de sus haciendas y talonarios porque de letras a través de los libros saben poco o nada y mejor dejemos los pinceles a un lado, por que solamente tienen grande mansiones (es lo que todo el mundo ve) y couelgan de las paredes hojas de calendarío porque no tienen ni idea de quien es Velázquez o Goya.
Me gusta vuestro trabajo. Obrigada
"... o mistério desfez-se quando a pesada bolsa caiu como míssil sobre a cabeça de uma das convidadas mais ilustres desse fim de tarde, dona Margarida de Mildência Infeliz da Horta.
— Eu sou a outra, mas com poder! "
Ahahahahahah!!!!!
Muito bom!
Obrigado, Hélder!
:D
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